quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O tato


O tato é o sentido que marca, no corpo, a divisa entre Eros e Tânatos. É através do tato que o amor se realiza. É no lugar do tato que a tortura acontece.

Escarafunchei minhas memórias de leitura e não encontrei nada que se referisse ao tato, exceto na poesia e na literatura. Um dos poemas de Fernando Pessoa que mais me comovem é construído a partir de uma experiência de um toque. “Foi um momento o em que pousaste sobre o meu braço, num movimento mais de cansaço que pensamento, a tua mão, e a retiraste. Senti ou não? Não sei. Mas lembro e sinto ainda qualquer memória fixa e corpórea onde pousaste a mão que teve qualquer sentido incompreendido, mas tão de leve!.. Como se tu, sem o querer, em mim tocasses para dizer qualquer mistério, súbito e etéreo, que nem soubesses que tinha ser.” ( Fernando Pessoa, Obra Poética, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, p.178 ) A mão toca o braço, sem pensar, para dizer... E daí surge um poema.

O olhar pode revelar amor ou morte. Mas o olhar exige distância para ver. O olhar não toca. Os olhos, para ver, têm de estar distantes da pele. O olhar promete, anuncia, ou o carinho ou o soco.

Mas o olhar não é nem o carinho e nem o soco. Carinho e soco são entidades do tato.

A audição também. Ouvir um poema pode ser uma experiência de amor (como no filme “O carteiro e poeta”). Mas nenhum amante se contenta com a alegria que seus ouvidos lhe dão ao ouvir a voz da pessoa amada. A voz não basta. A conversa ao telefone é alegria. Mas o telefone terá de ser desligado sem que se realize a promessa de carinho que estava presente na voz. Beethoven escreveu uma sonata que recebeu o nome de “Sonata do adeus”. Ela se divide em três partes. Inicia-se com três acordes de profunda tristeza e que dizem vagarosamente “Le-be-wohl” – “Adeus”. O segundo movimento é a “Ausência” – um tempo melancólico de tédio. Distância vazia. E o terceiro, de esfuziante alegria, o “Retorno”. Retorno é poder abraçar de novo, tocar, acariciar, beijar, fazer amor... A alegria dos ouvidos é mendiga. Ela está sempre mendigando o toque. Recebi uma chamada telefônica a cobrar. Ao atendê-la ouvi uma voz desconhecida que me ameaçava com um “grupo fortemente armado” caso não atendesse suas exigências. Eu não disse nada. Só desliguei o telefone. A voz, sozinha, não pode cumprir suas ameaças. A voz não pode perfurar o meu corpo.

O tato acontece quando a pele e, portanto, o meu corpo, é tocado por algo de fora (ou por ele mesmo...). Nisso está a sua delícia! Nisso está o seu perigo!

A primeira experiência do nenezinho ao vir ao mundo é a experiência de tato. Sem nada saber, sua boquinha já mama um objeto ausente. Fome, dirão. Não tenho tanta certeza. Se fosse fome o nenezinho pararia de chorar somente depois que o leite fizesse seu trabalho tranqüilizador no estômago. Mas não é assim. O nenezinho para de chorar imediatamente quando sua boca se ajusta ao seio. É uma experiência tátil de tanto prazer que permanece gravada inesquecivelmente em nossa memória erótica. É por isso que, mesmo depois de desmamados, os nenezinhos continuam à procura da experiência tátil original, completamente dissociada do leite.

(...) Mas o tato é, talvez, o sentido sobre o qual menos se tenha falado. Há uma filosofia dos olhos, uma filosofia do ouvido, uma filosofia da boca. Mas desconheço uma meditação filosófica sobre o tocar. E, no entanto, a pele é lugar de tantas alegrias. Lembro-me de uma cena do filme “Cidade dos Anjos”. Quando o Anjo Apaixonado resolveu tornar-se humano, mesmo ao preço de perder sua imortalidade, ele entrou no mundo desconhecido das delícias do tato. Há uma cena em que ele está tomando um banho de chuveiro. Ah! Que experiência assombrosa de prazer e alegria! E, no entanto, é uma experiência que temos diariamente. Acontece que, em nossos rituais, ela não é uma experiência erótica mas simplesmente um automatismo prático da caixa das ferramentas.

Rubem Alves

http://www.rubemalves.com.br/otato.htm

sábado, 25 de setembro de 2010

A Cidade Dos Artistas

A Cidade Dos Artistas
Chico Buarque

Na cidade
Ser artista
É posar sorridente
É ver se de repente
Sai numa revista
É esperar que o orelhão
Complete a ligação
Confirmando a excursão
Que te leva ao Japão
Com o teu pianista
E antes que
O sol desponte
Contemplando
O horizonte
Conceder entrevistas
Aos outros artistas
Debaixo da ponte
Na cidade
Ser artista
É subir na cadeira
Engolindo peixeira
É empolgar o turista
É beber formicida
É cuspir labareda
É olhar a praça lotando
E o chapéu estufando
De tanta moeda
É cair de joelhos
É dar graças ao céu
Lá se foi o turista
O dinheiro, a peixeira
A cadeira e o chapéu
Ser artista
Na cidade
É comer um fiapo
É vestir um farrapo
É ficar à vontade
É vagar pela noite
É ser um vaga-lume
É catar uma guimba
É tomar uma pinga
É pintar um tapume
É não ser quase nada
É não ter documento
Até que o rapa te pega
Te dobra, te amassa
E te joga lá dentro

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Sobre lugar nenhum

Por muito tempo a sensação de não pertencer a lugar algum me assustou e incomodou. Me senti excluída e um tanto deslocada em muitas ocasiões graças a isso... eu me cobrava... achava que deveria me sentir pertencente a algum lugar, puramente para me sentir segura, estável... pra saber pra onde correr.

Com o tempo, descobri que o não pertencimento a um determinado local mostrava algo maior... eu pertenço a mim mesma, não preciso estar fixada em certo lugar para me sentir segura, ter parâmetros para tomar decisões ou simplesmente conseguir entender o mundo.

Eu pertenço a mim mesma, e a minha fé de que o Universo é a minha casa e, restringir minha vivência a um pequeno espaço desse grande Universo seria uma grande ignorância. Assim, hoje continuo sentindo que não pertenço a lugar nenhum... sou uma cidadã do mundo, eterna aprendiz, sempre alerta, sempre completamente apaixonada por todas as oportunidades que um Universo tão vasto e incrível tem a oferecer a cada dia.

Se o Universo é infinito, a capacidade humana também é infinita e nenhum sonho é grande demais... Sou de lugar nenhum, sou do Universo, sou dos meus sonhos e da minha fé.